“Vidas Pra Contar” Djavan Hugo
Sukman Pode-se começar a audição de "Vidas pra contar" pulando a
primeira faixa, assim, apenas como um exercício de análise. E vai-se encontrar
um Djavan exercitando no limite o seu estilo consagrado. "Só pra ser o
sol" é uma daquelas canções matadoras, de tocar no rádio a vida inteira (e
sempre soando nova), de grudar no ouvido. Calcada na linha de baixo de Marcelo
Mariano e com desenhos inusitados do naipe de sopros tocado por Jessé Sadoc
(trompete) e Marcelo Martins (sax tenor), a canção logo conquista pela fluência
melódica dentro de uma estrutura harmônica surpreendente, cheia de modulações.
E pela letra, a poética de Djavan burilada como só ele faz, o uso de gírias
("uhu") em meio a imagens inusitadas (como a da moça revirando o
armário): "Uhu, você disse que vinha e veio/Não acreditei/E cheguei a
tremer/Pensei em você virando armário/Pra chegar em mim/Que bom! Te ver/Tão
linda e desejada".
Agora pense na última vez que
ouviu uma canção pop tão bem feita no sentido técnico, tão fácil de ouvir e
mesmo assim tão diferente de tudo, como essa descrição do espanto do homem
diante da beleza da mulher por quem está apaixonado.
Mas pode-se começar a audição,
num outro exercício de análise, como deve ser, pela primeira faixa. E aí vai-se
encontrar um Djavan diferente do esperado, exercitando-se num outro estilo, só
na aparência menos pessoal. O xote "Vida nordestina" traz o
compositor dialogando com uma das suas influências mais importantes embora das
menos explícitas, Luiz Gonzaga. E a música tem a simplicidade de Gonzaga, com
aquele tipo de melodia que parece ter sempre existido mas que foi criada
solidamente por um compositor. "Vida nordestina" nasce assim, clássica,
e com uma letra que Humberto Teixeira, sei não, até assinaria, sobretudo no
paradoxo que propõe ao afirmar logo nos primeiros versos, "A vida não é de
festa/Para o povo do sertão" e, alguns versos abaixo, poeticamente negar a
própria afirmação: "Mas quando é dia de festa/Todo povo do sertão/Dança
para aparar as arestas/Do coração/As moças já tão bonitas/Ficam lindas como
quê/E o homem nem acredita/No que vê".
Agora pense na última vez que
ouviu uma canção nordestina tão típica e ao mesmo tempo estranhamente original.
Como aliás é a vida no sertão ou qualquer vida, original e sempre a mesma. Ou,
como na letra de "Vida nordestina": "Até o lar onde falta o
pão/Tem lá seus dias de alegria".
"Vidas pra contar",
vigésimo terceiro disco de Djavan, conta vidas assim, reais mas sob o filtro da
poesia, do espanto pelo detalhe. E revela um compositor tão maduro que consegue
ser pessoal seja exercitando seu estilo consagrado, como em "Só pra ser o
sol", seja experimentando outras linguagens, como em "Vidas pra
contar".
Tal maturidade leva Djavan a
exercer seu estilo tão marcante em gêneros diversos de música popular -
lembrando que sua primeira educação musical foi, ainda menino em Maceió, na
eclética coleção de discos do pai de um amigo de colégio e nos programas de
auditório não menos ecléticos da Rádio Nacional, que ouvia com a mãe. Aliás, a
canção autobiográfica "Dona do horizonte" narra exatamente essa
relação de Djavan com a música a partir da influência da mãe que o fez ouvir
Orlando Silva, "Dalva de Oliveira e Angela Maria/Todo dia...".
No passeio por estilos da música
popular, "Ânsia de viver" é um samba sincopado típico de Djavan, que
nos lembra ser ele autor de clássicos do gênero ("Flor-de-lis",
"Fato consumado", etc.). "Não é um bolero" é um bolero
estilizado na música e um bolero típico na letra que lamenta a ausência de
amor: "Não é um bolero/É amor sincero/Que a tudo resiste/Não a ter ao
lado/Me deixa abalado/E nada é mais triste/A vida é à toa/Não fica de boa/Quem
não tem um querer". "Se não vira jazz" dialoga com o próprio
jazz no peso da introdução instrumental, na forma livre de cantar (com direito
a leves improvisos) e na complexidade harmônica, para uma letra que é o oposto
do bolero, uma celebração do reencontro e do amor de verdade: "Viver é bom
demais/Quando o amor está incluso/É um abuso de perfeição".
Já "Vidas
pra contar" é uma, ainda que originalíssima, canção de influência ibérica,
com toques flamencos, lembrando essa importante herança deixada para a música
brasileira, especialmente no Nordeste. Se "O tal do amor" dialoga com
as valsas francesas, e é leve na música para embalar uma letra levíssima
("Sorrir para mim/É quase um jardim/Onde pássaros voam"),
"Encontrar-te" é uma daquelas densas baladas de amor com vocação para
standard (senão ouçam a introdução do trompete de Jessé Sadoc, emulando as
grandes canções de amor de Gershwin ou Jobim), enquanto "Primazia"
situa-se num meio terno, é uma canção de amor, quase um fox-trot, leve como a
valsa e densa como a balada. Juntas, as três canções formam uma curiosa
trilogia que revela, ao cabo, a habilidade de Djavan em falar de amor nas
diversas formas de canção, sendo sempre fiel ao seu estilo.
Outras duas canções de
"Vidas pra contar" podem ser agrupadas num outro possível conjunto,
um díptico em que o diálogo não se dá propriamente com gêneros tradicionais da
música popular, mas com o próprio estilo de Djavan. "Aridez" é
daquelas canções que prescindem de assinatura, na música acelerada, exuberante,
inclassificável e na letra com aquela forma tão própria de Djavan em falar de
amor: "Atravesso o deserto escuro/Pra fugir da solidão/Você que é meu
farol/Não deixe eu me perder, não/É você quem há de me tirar/Dessa tremenda
aridez". De sabor jazzístico, "Enguiçado" é uma observação
crítica sobre o comportamento humano: "Tanto nego errado/Enguiçado/Dado a
viver/Com a coisa errada/Inclinado a tudo ceder/Se bem combinado/Em qualquer
lado pode estar".
A atordoante diversidade musical,
que confirma a potencialidade criativa de Djavan, é transformada em linguagem
musical pela banda que o acompanha e pelos arranjos do próprio compositor.
Pode-se dizer que "Vidas pra contar" é um disco de Djavan e banda, o
núcleo rítmico composto por piano (e teclados) de Paulo Calasans, baixo de
Marcelo Mariano e bateria de Carlos Bala, além de violões e guitarras de João
Castilho e do próprio Djavan e sopros de Jessé Sadoc e Marcelo Martins. Cantor,
compositor, letrista, guitarrista e arranjador em todas as faixas, Djavan tem
nessa banda de virtuoses a sua voz musical: uma voz que ao mesmo tempo esbanja
estilo e por outro conversa com toda a tradição da música popular em que sua
mãe o introduziu ainda na infância. Com cuidado e carinho de quem canta para a
própria mãe (como confessa em "Dona do horizonte": "Cantava ali
só para ela ouvir") é assim que Djavan parece cantar neste "Vidas pra
contar".
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